Tudo é Possivel

 Deixo Lys em casa com certa relutância. Nossa noite foi inesquecível. Descobri que sim, é possível se apaixonar mais de uma vez pela mesma pessoa — porque é exatamente o que está acontecendo comigo. Ela também não queria que acabasse, dava pra sentir. Ficamos no carro por mais quinze minutos, tentando segurar o tempo com as mãos antes de voltar à realidade.

Ao chegar na casa dos meus avós, eles já estavam acordados. Cumprimentei minha avó com um beijo carinhoso e meu avô com um sorriso cúmplice — que retribuíram com aquele olhar de quem sabe mais do que diz. Fingi não perceber e subi.

Meu celular estava sobre a cama quando vibrou. E claro, era quem eu imaginava.

Lys: É cafona dizer que estou com saudades?
Joe: Me diz você... porque eu estou. ♥
Lys: Somos um casal cafona? Eu não me importo. Sinto sua falta, mas preciso trabalhar.
Joe: Eu também. Amo você.
Lys: Eu amo mais...
Joe: Veremos...
Lys: ;-)

Fico ali, encarando a tela, esperando uma resposta que não vem. Ao invés disso, escuto o carro dela partindo. Também preciso trabalhar — as reuniões do meu pai nunca têm fim. Engraçado como me adaptei rápido ao home office, eu que detestava me sentir preso em casa. Talvez seja influência de uma certa vizinha…

Fechei negócio no meu novo apartamento. Meu irmão chega em duas horas. Já avisei aos meus avós sobre a mudança — não gostaram muito, mas aceitaram. Disseram que assim poderão fazer noitadas sem se preocupar com o “neto idoso”. Amo esses dois. Enquanto empacoto minhas coisas, o tempo voa. Até que ouço uma batida na porta.

— Fiquei sabendo que o velho Joe dormiu fora. — Jimmy está parado na porta, sorrindo.

— Vai se ferrar... Que bom que chegou, estava precisando de ajuda com a mudança.

— Para onde eu vou, sou explorado. Nem um “Que bom te ver, irmão. Fez boa viagem?”

— Você está bem? A viagem foi boa? Agora pega aquela caixa ali.

— Que gentil da sua parte, querido irmão...

— Eu sei. — Ele ri. Gosto disso: a bagunça boa entre irmãos. Devo muito a ele, e quero que essa mudança lhe traga novos horizontes.

Organizamos tudo. Jimmy adorou o apartamento. Tentei convencê-lo a ficar. Depois de um dia puxado, estou exausto. Me dediquei a deixar o espaço com minha cara — e, secretamente, com um toque que Lys aprovaria. Queria fazer uma surpresa. Agora, me sinto apreensivo... e com fome.

— Jim, que tal conhecer o restaurante da Lys?

— Já era hora. Se demorar mais, minha cor natural não volta, estou azul de fome.

— Já tentou carreira de ator?

— Engraçado... Mas olha o relógio! Quase quatro da tarde, vamos logo antes que a morte me alcance.

Ao mesmo tempo que quero apresentá-la como minha namorada, me bate um certo receio. A chance de Jimmy gostar dela é enorme — e isso me deixa dividido. Mas desejo que tudo corra bem. Jimmy observa a paisagem pela janela, com aquele olhar de quem começa a se permitir. Quando a gente está feliz, quer contagiar o mundo, pena que não dá pra resolver tudo só com bons sentimentos.

— Esse é o restaurante dela? — ele pergunta ao estacionarmos.

— Sim. Por quê?

— Uau. Como ela conseguiu abrir algo assim aqui? Parece um shopping no deserto... Impossível. — Ele está claramente encantado.

— Lys tornaria o deserto um bom negócio.

— Ela é louca. Talvez por isso goste de você.

Dou risada. Lys pode ser muitas coisas — mas de louca, não tem nada.

Entramos. Sentamos. Fizemos o pedido. Karen vem até a mesa.

— Posso avisar a Lys que você está aqui?

— Depois eu vou vê-la. Agora, preciso alimentar esse faminto aqui.

— Prazer, Jim. O Joe nunca comentou que tinha um irmão.

— O prazer é meu. Você que gerencia tudo isso?

— Eu e Jane. Lys e Douglas estão focados em novos projetos. Ela só acompanha os relatórios mensais e implementa melhorias. Aqui são quatro restaurantes em um. No andar superior há uma praça de alimentação com espaços para estudo, trabalho... e consumo. O ambiente é aromatizado, convidativo. A ideia é que qualquer pessoa, ganhando R$ 30 mil ou um salário mínimo, se sinta confortável.

— Incrível. Depois quero conhecer tudo.

— Claro. Temos política de transparência. Você come e pode saber como tudo é feito. Preciso ir para uma reunião. Peço para a Jane te mostrar o lugar.

— Obrigado, Karen.

— De nada. Joe, a Lys está no andar de cima. Disse que lá a criatividade flui melhor.

Karen sai. Jimmy parece impressionado. Está até rindo.

— Tá rindo de quê?

— Nada.

— Você é um idiota.

— Aham. Olha, a comida chegou.

Ele encara o prato e desiste das provocações. A comida está excelente.

— O que achou?

— Fantástico. Isso aqui tem alma. É disso que falta na empresa do nosso pai. Visão. Sua namorada tem criatividade, espírito empreendedor... vale milhões.

— Mas são setores diferentes. Papai lida com matéria-prima: café, soja, carne. Ela trabalha com o produto final, gastronomia.

— Eu sei. Mas ainda fazem parte do mesmo círculo — alimentar o mundo. Imagina unir as visões?

— Se você gosta tanto disso, por que não trabalha com a gente?

— Quero expandir meus horizontes. Se tudo der errado, volto. Mas agora quero provar pra mim mesmo que posso ir além.

— Você já presidiu a Knorr Engenharia...

— Mas lá eu não era bom o suficiente para ficar com a Alicia. E acabei perdendo meu lugar.

— Quem é Alicia?

— Filha do gerente de marketing. Um dos sócios. Eu sou gago, Joe. Quem deixaria a filha namorar um gago?

— Mas você não gaguejou uma vez sequer desde que chegou.

— Só acontece quando estou nervoso. Alicia acabou concordando com o pai. E eu... me demiti.

— Sinto muito, irmão.

— Tá tudo bem. Já foi. Agora vou procurar outro trabalho.

— Eu preciso de alguém nas relações exteriores...

— Ainda seria trabalhar pro papai. Mas não se preocupe comigo. A comida estava maravilhosa, agora quero conhecer o resto do ambiente.

— Vai lá.

— Quem é Jane?

— Pergunta na recepção, vão te indicar.

Pago a conta e subo, procurando por alguém especial. Caminho por todo o espaço, mas não a encontro. Decido mandar uma mensagem.

Joe: Oi, estou no restaurante. Quero te ver. Onde você está?
Lys: Estou no café.
Joe: Ainda não te vi.
Lys: Só um minuto.

Sento em uma das mesas e espero. Pouco depois, ela surge pela porta da cozinha do café. Usa jeans e sapatilhas, o cabelo preso com a franja caindo no rosto, uma camisa azul escura e aquele batom discreto que aprendi a amar. Está linda, como sempre.

— Oi... senti sua falta.
— Eu também.
— Você está corada... adoro quando fica assim.
— E você continua sem modos. Não se diz a uma dama que ela está vermelha.
— E o que se diz, então?
— Talvez... "amo você"?
— Tudo bem. Vem cá.
— Não posso, estou no trabalho. Comporte-se.
— Mas estou comportado. Agora você não vai nem chegar perto de mim?
— Não. Vamos para minha sala. Não confio em você.

Finjo estar ofendido e a acompanho, sorrindo.

— Estou organizando novos projetos. Sei que já tenho muitos, mas sinto que ainda não é o suficiente.
— Você é excelente no que faz. Meu irmão, aliás, está impressionado com tudo — digo, observando seu olhar se suavizar com o elogio.
— Sério? Nem sabia que ele estava aqui.
— Chegou hoje cedo. Me ajudou com algumas coisas... aliás, preciso te mostrar algo. É importante.
— Também precisamos conversar. É sério, mas não tem a ver com a gente... não me olha assim. É só que... preciso dividir com meu namorado algumas coisas.
— Amo quando minha namorada quer compartilhar comigo. Ah, sua sala mudou... aquela mesa sumiu?
— Era onde eu e o Douglas trabalhávamos. Mas ele começou a confundir as coisas... achei melhor transferi-lo para a Art Company.
— Confundir como?
— Ele deixou de me ver como amiga e chefe. Tive que explicar que tenho um namorado muito gato que eu amo muito. Para evitar um clima pesado, realoquei ele.
— Isso faz quanto tempo?
— Acho que no início do mês. Por quê?
— Então... você disse que me amava no início do mês? — pergunto, vendo a verdade estampada em seu rosto ruborizado. Ela me ama desde então, só tinha medo de admitir. — Acho que você precisa parar de ficar vermelha perto de mim.
— Não estou vermelha. E sim, disse... porque era verdade.

Ela começa a andar de um lado para o outro, então para e me encara. Me aproximo, envolvo-a num abraço. Temos um encaixe perfeito. Ela é menor e, quando encosta em mim, sei que consegue ouvir meu coração. Beijo sua testa.

— É sobre isso... ter tudo o que se ama no mundo. Acho que já tenho quase tudo: família, amigos e alguém para amar — e ser amado de volta. Eu amo você. Cada vez mais.
— Acho bom — responde, com a voz abafada.

Alguém bate à porta. Ela se afasta, assume o tom sério de chefe e diz:

— Pode entrar.

Jimmy e Jane aparecem. Parecem ter se dado bem. Jane, com os olhos azul-acinzentados, cabelos ruivos e sardas, sorri.

— Estamos atrapalhando, irmão? — Jimmy brinca.
— Claro que não. Seja bem-vindo — diz Lys. — Seu irmão fala muito de você. Que bom tê-lo aqui.
— Posso ser honesto?
— Deve.
— Lys, isso aqui é incrível. Já trabalhei em muitos lugares, mas aqui... dá pra sentir sua paixão em tudo.

Ela sorri, visivelmente lisonjeada.

— Obrigada. Fiz disso um sonho realizado. Meu pai e eu desenvolvíamos projetos para bares e restaurantes. Depois da morte dele, quis algo maior. E você, trabalha com o quê?
— Bem, cumpri minha missão por aqui. Com licença — diz Jane, saindo. Mas antes, Jimmy faz um gesto sutil com a mão e ela hesita, como se algo existisse ali. Lys percebe, mas finge não notar.

— Trabalho com gerenciamento de finanças, mas no momento estou em férias forçadas.
— Não querendo abusar... mas estou com outros projetos em mente, e Karen e Jane estão sobrecarregadas. Eu e Karen damos conta daqui, mas quero expandir para o turismo — hotéis, pousadas, bares. Se quiser conversar, estou à disposição.
— É uma ótima ideia. Só preciso saber se meu irmão vai querer dividir o apartamento novinho comigo.

Depois dessa, bem que podia ter dito não. Era pra ser surpresa. Lys finge naturalidade, mas percebo o leve desconforto.

— Sem problemas, Jimmy.
— Ótimo. Quando começo?
— Amanhã conversamos com calma. Fique à vontade para terminar seu tour.
— Obrigado. Você e Joe fazem um belo casal... só não entendo o que viu nele, mas enfim... — brinca, saindo.

Lys me encara.

— Queria fazer surpresa, mas ele estragou. Ainda assim, quero que vá conhecer meu novo lar.
— Você está se mudando para cá?
— Sim. Achei que ficaria chateado por eu não ter contado.
— Deveria. Mas estou mais feliz por ter você perto de mim.

— Do que você trabalha mesmo, namorado?
— Comércio exterior, na empresa do meu pai. Me aposentei do exército, mas não queria ficar parado. Por quê?

Ela se aproxima, senta na mesa, se encaixa entre minhas pernas, e segura minhas mãos.

— Quero conversar sobre tudo... minha vida, a sua, nossas histórias. Quero te conhecer melhor.
— Pode começar agora, se quiser.

— Descobri que tenho um tio. E ele vai vir me ver amanhã. Quero que esteja comigo. Estou com medo, Joe.

Ouço em silêncio. Fico surpreso, mas feliz por ela confiar em mim. Nosso relacionamento começou num momento conturbado. Ela ocupada, eu também. Mas agora, finalmente, temos espaço para nos conhecermos de verdade. Quero descobrir cada pedaço da sua história — e permitir que ela conheça os meus também.

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