CAPITULO 2 - Princípio da Dor
Faz um mês desde que deixei o hospital. A casa, que antes era meu refúgio, agora parece ecoar o vazio. Não tenho emprego. Meu curso de administração está no fim e não sei se tenho forças para voltar. Às vezes, só o pensamento de retomar algo me paralisa. O advogado veio hoje com os papéis: atestado de óbito, contas acumuladas, pendências que me lembram o quanto a vida desmoronou.
Tenho dinheiro para sobreviver, não para viver. A casa... parece que carrega uma marcha fúnebre em cada canto. É como se o silêncio tivesse peso. Estou sozinha. E quebrada.
Me sento no telhado ao entardecer. Gosto de estar ali. A solidão me envolve como um cobertor frio, mas familiar. Observo as luzes das casas se apagando, uma a uma, como se o mundo fosse dormindo. Ali, se eu gritasse, ninguém ouviria. Meu corpo está exausto. A mente ainda mais.
Os vizinhos, idosos gentis, me estendem o que podem. A Sra. Brandon, com sua audição falha, e os Jones, que cuidam de mim como avós postiços. Às vezes me sinto um fardo, embora ela jure que minha presença lhe faz bem.
A ausência me atravessa com força: não tenho pai, nem mãe. Nenhuma família que se importe. Penso em gritar. E grito. Alto. Com tudo que tenho. Não me traz alívio, como imaginei. Só mais silêncio depois. Mas as emoções, essas, saíram.
Deito no colchão frio. O quarto continua igual, mas eu... não.
Acordo com o sol me ferindo os olhos — esqueci de fechar as cortinas. Hoje é dia de ajudar a Sra. Jones.
Consulto minha “lista de sobrevivência”, ideia da psiquiatra:
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Banho
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Ir às aulas
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Ajudar a Sra. Jones
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Limpar o jardim
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Fazer compras
Parece uma lista de tarefas banal, mas às vezes só ela me salva do caos.
Desço, faço café, e decido cuidar do jardim. Está morto, como tudo por aqui. Corto a grama, limpo, transplanto algumas plantas. Quase quatro horas se passaram. São 10:15 da manhã. Preciso correr.
Douglas me deixou a caminhonete do meu pai — o carro antigo não sobreviveu ao acidente. Carrego plantas e suprimentos no porta-malas.
— Lily? Tudo bem? — pergunta Ana, com olhos gentis.
— Estou em um dia bom, Ana. E a senhora?
— Melhor agora, vendo seu jardim ganhar vida. Vai plantar algo bonito?
— Vou tentar. Não sou boa com flores, mas elas merecem uma chance.
— O Michael pode ajudá-la, se quiser.
— Obrigada, mas são só algumas flores. Se precisar, eu peço ajuda.
Ela sorri com leveza. Sigo caminho até a casa da Sra. Jones.
Após o banho e alguns atrasos (esqueci de escovar os dentes, voltei correndo), chego à porta deles.
— Bom dia, minha menina! Hoje está até corada! Ficamos tão felizes de ver você assim, não é, John?
— Sim, querida. É bom ver a Lily se recuperando.
— Oi, vovô Jones. Estou melhorando, um passo de cada vez.
Uma voz nova interrompe com bom humor:
— Vovô Jones?! Sério? Ela pode te chamar assim e eu não?
Olho surpresa. Um homem alto, moreno, olhos azuis intensos. O tipo de olhar que vê além.
— Esse é Joe, meu neto ciumento.
— Prazer, Lily. Você é a vizinha que tem cuidado dos meus avós, certo?
— Na verdade, acho que são eles que cuidam de mim. — respondo com um sorriso tímido.
Ele me encara por um momento. Depois, se afasta.
— Ele está passando por um momento difícil, querida. Veio respirar um pouco aqui. Mas, por favor, não se sinta presa a nós dois. Vá viver, sair...
— Não é sacrifício. Gosto de estar com vocês. Mas... aceito a folga hoje. Tenho coisas para resolver.
— Vá, mas volte para o chá da tarde. Está combinado.
Em casa, reviso a papelada. Entre contas e propriedades, uma ideia antiga volta: abrir um restaurante. Será que consigo?
Enquanto procuro um lugar para descansar, encontro lembranças demais. Quadros da minha mãe, uma artista cheia de alma. A casa de bonecas que meu pai construiu. Cada cor, cada detalhe... memórias que hoje só machucam.
Sento no chão da garagem e desabo. Fotos, risos congelados no tempo, tudo desmorona comigo. Quebro o porta-retrato daquela menina sorridente. Ela não existe. Era uma ilusão. Eu fiquei.
— Lily! — mãos me seguram. Fortes, firmes.
— Deixa... só quero quebrar tudo...
— Não. Está tudo bem. Só... respira. Eu tô aqui. — diz Joe, a voz como uma âncora no meio do caos.
E eu choro. Pela menina que nunca fui. Pela dor que não pedi. Pela solidão.
— Shh... A culpa é um veneno. Não deixa ela te dominar. Você vai ficar bem.
— Eu só... queria que fosse diferente. Estou cansada. Só isso.
— Quer chá? Meus avós juram que hortelã cura até alma quebrada. Prometo não falar de artrite.
Sorrio. Pela primeira vez em dias, sorrio de verdade.
Na cozinha, entrego-lhe uma xícara.
— Se preferir café...
— Não, chá é perfeito. Especialmente hortelã. Acalma.
— Essa cozinha é velha, mas ainda tem seu charme.
— Tenho só duas décadas de vida, e mesmo assim sinto como se já tivesse vivido demais.
— As pessoas só... vivem, Lily. Não há certo ou errado. O que fazemos com o que temos é o que muda tudo.
— Mas e quando tudo que temos é dor?
— Aí você escolhe: continuar presa nela, ou aprender. Mesmo quando não parece justo.
— Tenho medo... de não saber viver. De não saber ser feliz.
— Não tem só um caminho. Escolha o mais leve agora. E vá aos poucos. Seu pai se foi há pouco. É normal se sentir assim.
— Obrigada... por hoje.
— Quando quiser, só me chamar. A gente toma outro chá. Ou conversa sobre remédios, se preferir.
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