Joe - Posso Tentar Hoje. Se Não Der Certo, Tento de Novo Amanhã.

 Ela está parada à porta, segurando uma xícara de chá. Seus olhos, antes um misto de surpresa e uma tênue alegria, agora me perscrutam em silêncio. Não vejo julgamento, nem resquícios de raiva, apenas a quietude de uma mente processando. Observo seu rosto, cada linha, cada contorno, e lembro, com uma clareza que me atinge como um raio, por que me apaixonei por ela. Lys é perfeita do jeito mais singular que existe.

Ela balança a cabeça e, com aquele tom sarcástico que só ela tem, a voz cortando o ar como uma lâmina afiada, diz:

— Que tal um "senti sua falta" ou um pulo animado com um "você voltou!"? Ou quem sabe... “Nossa! O que faz aqui na minha porta? Achei que tinha virado pó, ou ido passear em Marte, onde a comunicação ainda é um mistério... Ou você...”

— Já entendi — interrompo, um sorriso se desenhando nos lábios. — Ou posso simplesmente dizer: me desculpe. Me desculpe por ter te deixado em um labirinto de incertezas, por não ter me revelado por completo... Ou talvez eu tenha, lá na biblioteca da minha mãe — e vejo o rubor tingir suas maçãs do rosto, um espetáculo que sempre me encanta. — Por quê?

— Por que o quê?

— Por que você não disse que era comigo que estava falando aquele dia? Na biblioteca. Onde nos conectamos sem saber.

Um véu de melancolia parece cobrir seus olhos. — Não sei... talvez porque você parecia tão à vontade ali, em seu próprio universo. E eu... eu sentia que não me encaixava naquele cenário. Talvez por ser apenas a vizinha dos seus avós. E, oficialmente, não tínhamos qualquer laço.

— Podemos mudar isso.

— Mudar o quê?

— Seu status de relacionamento... para “profundamente apaixonada”.

Ela ri, um som cético que ecoa no ar.

— De onde tirou essa dose cavalar de bom humor? E desde quando você fala tanto? Quem é você, afinal?

Ela desvia o olhar, me presenteia com um daqueles sorrisos de canto de boca que me desarmam, e eu me pergunto como alguém pode ser tão incrivelmente bela. Lys respira fundo, e eu fico observando o ritmo frenético do pulsar das veias em seu pescoço. É bom saber que ela está nervosa, porque eu quase tive um colapso só com a expectativa de vê-la. Mal posso acreditar que estivemos tão perto e não nos reconhecemos antes.

— Você está prestando atenção? — ela pergunta, a voz um pouco mais suave.

— Não sei... pode recomeçar? — digo, com a curiosidade genuína de uma criança que indaga sobre a cor do céu.

Ela ri mais uma vez, um riso que desarma a tensão.

— Eu disse que é bom que tenha voltado. Mas... por que está aqui?

— Como eu ia dizendo: que tal começarmos do zero? Só que dessa vez sem nós mesmos complicarmos. Por isso estou aqui. E trouxe flores.

— Hã... obrigada. Mas não me entenda mal. Você apareceu, sorrindo e destilando as palavras certas para alguém que estava completamente à deriva. E eu... bem, comecei a te achar o máximo. Aí você me deixa um bilhete que poderia — e eu realmente acreditei que pudesse — significar algo. E então você evapora. Por quanto tempo mesmo? Quase um ano? E agora simplesmente ressurge, me pedindo para sair? Está brincando comigo?

Ela anda de um lado para o outro, a agitação evidente em cada passo.

— Não posso sair com você agora. Qual vai ser a próxima vez? Ano que vem? Me entende? Eu não funciono assim. Você surge e desaparece... E eu não posso viver nessa corda bamba da incerteza. Não é que eu tema as mudanças. Eu gosto delas. Mas estou num momento em que preciso de alicerces. Já carrego uma dor que pesa como uma âncora. Não posso permitir mais instabilidade em minha vida.

— Lys... Eu entendo. E sinto muito pelo que te fiz passar. Mas eu precisava fechar um ciclo antes de poder começar outro. E este aqui... — olho bem nos olhos dela, buscando a conexão — eu só consigo imaginá-lo com você.

Ela me encara como se buscasse fissuras em minha sinceridade. Caminha até a sala, deposita a xícara sobre a mesa de centro e se joga no sofá, como se um peso invisível a empurrasse para baixo, exausta de pensar, de sopesar cada fragmento. E eu odeio saber que sou o arquiteto dessa fadiga. Me aproximo, sento à sua frente e pego suas mãos, sentindo a maciez da pele.

— Eu não sei, Joe. Tenho medo. E se você for embora de novo? A gente não constrói vínculos pensando num futuro se a pessoa não pretende ficar.

— Sei que quebrei sua confiança. Mas estou aqui agora. E eu quero ficar. Podemos fazer dar certo. Só precisamos tentar. Que tal começarmos com um cinema? Como amigos. Depois, quando você se sentir pronta, a gente sobe um degrau.

Ela hesita, respira fundo, o ar parecendo pesado em seus pulmões.

— Tudo bem. Mas hoje não. Tenho uma montanha de coisas pra resolver, trabalho, empresa, contas. Me desculpa te fazer gastar colônia à toa. E, só pra constar, essa história toda de flores... é um pouco demais pra mim. Prefiro gestos simples.

— Não prefere ser mais sensível também?

— Só de vez em quando — ela sorri, mordendo o lábio. Um sinal inconfundível de seu nervosismo. — Mas... amei as flores. Obrigada.

— Eu também amei... não as flores, mas o jeito como você as recebeu — ela ri, dessa vez um riso genuíno que ilumina o ambiente.

— Já vou indo. Já que não tenho companhia, vou comer sorvete e chorar horrores.

— Jerryberry Chocolate Therapy é ótimo. Até logo.

— Você é cruel. Não vai nem me acompanhar até a porta? Não quer que eu volte?

— Vai me ouvir se eu disser que sim?

— Não.

— Então vai sozinho.

— Ok, ok. Te vejo amanhã?

— Talvez...

Ela sorri. E eu vejo que, embora tenha dito não, ela também não gostou da própria decisão. Isso me parte um pouco por dentro, como um estilhaço de vidro no peito.

[...]

Saio para dar uma volta. Apesar da noite, aproveito para olhar alguns apartamentos. Não quero morar com meus avós, embora sejam ótimos. Vi um lugar bacana a algumas quadras da casa deles. Vai ser bom ficar aqui, tranquilo. Agora que vou cuidar dos negócios da família à distância, prefiro um canto só meu.

Jimmy parece estar enfrentando dificuldades... ouvi dizer que foi demitido, mas não sei detalhes. Fomos próximos, depois distantes. Mesmo assim, pego o telefone. Um dia fomos irmãos de verdade. E ainda somos.

No segundo toque, ele atende:

— Fala aí.

— Boa noite. Esse é o novo cumprimento jovem?

— Pois é, cara. Tô meio grogue ainda.

— O que andou fazendo?

— Bebendo, claro. Não tô legal ainda... mas vou ficar. E você, o que manda?

— Queria saber se não quer vir pra Woodstock.

— E o que vou fazer aí nesse fim de mundo? Preciso de um emprego.

— Pode tentar aqui também.

— Joe... por que ligou?

— Não posso ligar só pra jogar conversa fora?

— A última vez que isso aconteceu foi há uns quinze anos. O que tá pegando?

— Quero ser diferente, Jim. Melhor. Cansei de estar sozinho. Você ainda é meu irmão.

— Um irmão que você ignorou por muito tempo... mas tudo bem. Quer mesmo tentar isso?

— Sim. Um recomeço. Você não acha que já fizemos besteira demais?

— Vai querer fazer trancinha no meu cabelo e tomar chá também?

— Vai à merda — ele ri, e eu também. Parece que irmãos fazem as pazes assim mesmo.

— Jim, tô procurando um apê aqui. Quero dar espaço pros velhos.

— Ou fugir da onda de amor eterno que eles vivem. É bonito de ver, mas insuportável de perto.

— É pelos dois motivos. Vai vir quando?

— Amanhã ou depois. Não tenho nada me prendendo aqui. Boa noite, docinho.

— Boa noite, idiota.

[...]

Estaciono em frente ao restaurante da Lys. Meus avós falaram sobre ele. É bonito, imponente, mas aconchegante. Tem janelas grandes de vidro, uma vista linda da praça. Dá pra ver o carinho nos detalhes. Ela colocou amor em cada centímetro ali.

E é ali, olhando para aquele prédio, que tenho certeza: vou tentar. E se não der certo hoje, tento de novo amanhã.

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