A vida vista de longe

 


Dizer que tive um sono agitado é pouco. Acordar cansado e confuso tem se tornado rotina. Meus olhos percorrem o quarto escuro enquanto a mente tenta se localizar. Estou na casa dos meus avós. As cortinas grossas bloqueiam quase toda a luz da lua, mas um pequeno feixe escapa por uma fresta no canto da janela, como se insistisse em me lembrar que a noite ainda está viva.

Meu corpo pede descanso — aquele tipo de descanso que não vem, mesmo quando se dorme. Já nem lembro quando foi a última vez que tive uma noite tranquila, sem os pesadelos que me perseguem. Quando era menino, neste mesmo quarto, imaginava como seria crescer, ansiava por me tornar adulto. Quanta ingenuidade. Sinto saudades da inocência de então, da certeza boba de que tudo daria certo. Hoje, vivo no avesso dessa promessa.

Meu pai dizia que me colocaria num colégio militar pra me ensinar a ser um homem honrado. Acho que ele fez o que podia — talvez o que achou ser o melhor.

Me levanto e vou até a janela. A cada centímetro que afasto a cortina, a luz da lua se impõe. Ali está ela, imponente, fria, como uma imperatriz silenciosa. Mas sua beleza me dói. Ela sempre me leva de volta àquela noite.

Estou no helicóptero, minha primeira missão. O ruído dos motores, o balançar da aeronave enquanto subíamos, e lá embaixo, as explosões recortando a terra como trovões partindo o chão. A missão era simples: resgatar civis, levá-los ao ponto seguro e voltar à base. No começo, estava empolgado. Era aquilo que eu tinha treinado pra fazer.

A segunda ordem era clara: "Se houver ameaça, recuem."

Pousamos. Nos dividimos. Cada um foi em busca de quem ainda restava. No caminho de volta ao abrigo, meus olhos encontraram os dela — uma garotinha. E naquele instante, tive a sensação absurda de que ela já sabia. Seus olhos castanho-esverdeados me atravessaram como lâminas. Havia aceitação ali. Serenidade diante da morte. E foi então que as bombas caíram.

Fiquei paralisado.

O calor do fogo subiu como uma onda violenta. E por dentro, tudo se partiu. Pensei que fosse o fim. Mas não foi. Foi o começo de outra vida — uma que até hoje carrego como peso nos ombros. Acho que eu também morri ali. Ou pelo menos, uma parte de mim.

A vida tem um senso de humor estranho. Três anos depois, vi aqueles mesmos olhos. Não iguais, mas espelhados. Estavam na sala da casa dos meus avós. Dessa vez, pertenciam a uma jovem. Um rosto delicado, quase angelical. Cabelos longos, de um castanho que não era escuro nem claro — apenas único. O olhar, perdido. Um sorriso leve mascarava o vazio — e eu reconheci aquele vazio. Era o mesmo de quem já perdeu demais. De quem não sabe se ainda aguenta.

Um barulho vindo da casa me arranca das lembranças. Algo sendo fechado ou talvez aberto — não sei. Resolvo preparar café. Mas, no caminho, algo me detém: vejo-a sentada no telhado, observando o nascer do sol como se tentasse decifrar os segredos da manhã.

Ela parece em paz, mas há algo nela que não me engana. Ontem, vi quando ela quebrou tudo na garagem. Vi o desespero. Mas também vi alguém tentando. Lutando, mesmo sem forças. E agora, ali, com o rosto banhado pela luz dourada do dia, ela parece ser só uma garota qualquer. Mas sei que não é. Há algo nela que... ecoa.

Ela vira o rosto devagar. Me vê. Nossos olhos se cruzam. Ela apenas meneia a cabeça, num gesto silencioso de reconhecimento, e se vira, desaparecendo da minha vista.

Me troco e decido correr. Correr me ajuda a pensar — ou a parar de pensar, o que às vezes é melhor. Mas parece que não sou o único que tem essa ideia. Do nada, ela passa por mim em disparada. Corre como se estivesse fugindo de algo que ninguém mais consegue ver. O foco dela é tão intenso que duvido que perceba o mundo ao redor.

E lá está de novo aquele efeito estranho — hipnotizante. Fico parado. Observando. E sorrio, meio sem querer.

Talvez — só talvez — aqui seja um bom lugar pra começar.


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