2 - Desespero
Quando chego em casa, sou recebida pela minha velha conhecida: a solidão. Não estou exatamente sozinha, mas essa casa carrega um silêncio que grita, uma ausência que pesa. Não me dou ao trabalho de acender as luzes — conheço cada canto de cor. Largo minhas coisas no sofá, descalço os sapatos e sigo sem pressa. Quando era mais nova, costumava caminhar pela casa tarde da noite só para escutar o som suave dos meus pés no chão frio. Era uma maneira estranha de lembrar que eu ainda existia.
Abro as cortinas. Deixo a luz da lua invadir a sala, banhando os móveis elegantes com um brilho prateado e silencioso. Meu pai deixou a casa do jeito que minha mãe gostava — cheia de móveis. Mas depois que ela se foi, tudo foi mudado. A designer substituiu cada peça por algo mais moderno, mais sóbrio. E agora vejo… o espaço, o vazio, faz mais sentido do que eu imaginava.
Do outro lado do vidro, meu jardim resiste. Dois meses e dezesseis dias de cuidados diários. As begônias, as rosas, a grama... todas vibram sob o luar, como se quisessem me lembrar que algo ainda floresce, apesar de tudo. Talvez eu devesse ser grata. Talvez isso já fosse o bastante — manter algo vivo.
Coloco para tocar a música da minha infância, aquela da aula de balé que fiz até os quinze anos. Torn, de Nathan Lanier. A melodia preenche a casa como uma brisa antiga, e meu corpo responde antes mesmo que eu perceba. Meus pés se movem com delicadeza, lembrando passos que minha mente havia esquecido. A dança se torna confissão, refúgio, oração silenciosa. Por alguns minutos, permito que a tristeza se dissolva na música.
E nesse instante... talvez, só talvez, eu consiga vislumbrar um futuro. Algo mais leve, menos quebrado.
O cansaço me alcança com suavidade. Sento na poltrona que, um dia, serviu de descanso para o meu pai — hoje, é tudo o que me resta dele. Uma lembrança revestida de tecido e tempo. Fico ali, imóvel, observando o mundo lá fora se transformar. As luzes da vizinhança se apagam uma a uma. Os latidos distantes dos cães preenchem o ar. E, como num piscar de olhos, os primeiros raios de sol tingem o horizonte de dourado.
As ruas ganham vida novamente. Corredores, barulho de portas de carros, crianças com mochilas nas costas. A cidade desperta. Mas eu... continuo no ontem. Enquanto o mundo escreve novas páginas, sigo presa a uma história que não avança. Uma história interrompida.
Minha mente mergulha nos “e se” que tanto me atormentam. E finalmente, o cansaço vence. Meus olhos pesam. Adormeço, não com sonhos — esses não me visitam mais —, mas com um vazio que lembra o medo de uma menina assustada em um lugar escuro demais para imaginar qualquer esperança.
Não sei quando fui parar no chão. Mas o calor do sol é implacável ali, quase cruel. Minha cabeça pulsa, como se mil tambores marchassem dentro dela. Meu corpo dói inteiro. Uma dor familiar. Já fiz isso antes — dormir no chão, inconscientemente. Depois da morte do meu pai, era quase um ritual: deitar no frio e esperar que, de alguma forma, o dia seguinte trouxesse ele de volta. Nunca trouxe.
Levanto, trôpega, e vou até a cozinha. Meu estômago reclama alto. Pego uma tigela, cereais, leite. Tudo muito automático. Mas antes que a primeira colherada toque meus lábios, a campainha toca. Alta demais. Estraçalha minha cabeça já fragilizada.
Olho o relógio. São 15h. Dormi demais. De novo.
A campainha insiste. Maldições silenciosas escapam enquanto caminho até a porta. Quando abro, sou surpreendida. Uma mulher está ali. Alta, elegante, de uma beleza quase cenográfica. Poderia estar numa capa da Vogue.
Antes que eu diga qualquer coisa, ela ergue a mão — uma unha impecável apontando em minha direção — e dispara.
— Vou dizer isso apenas uma vez… fique longe do meu noivo. — A voz dela é fria como metal. Por um segundo, penso em rir. Mas minha boca ainda está meio dormente de surpresa. Preciso perguntar, preciso entender.
— Quem é você? E quem seria o seu noivo?
Ela revira os olhos com tanta arrogância que quase posso sentir o peso do desprezo.
— Não se faça de desentendida. Essa cidade inteira está comentando como vocês dois andam próximos. Só pra deixar claro… eu e ele temos um filho. E pode ser que eu esteja esperando outro. A não ser que você seja mesmo uma destruidora de lares… fique longe dele. Está me ouvindo? Fora do meu caminho.
— Acho que você está confundindo as coisas… — tento manter a calma, embora a cabeça já comece a girar. — Não estou próxima de ninguém. Não faço ideia de quem você está falando.
Ela arqueia a sobrancelha com perfeição ensaiada, enruga o nariz como se sentisse o cheiro de algo podre.
— Joe. Ele é meu noivo. E você faria bem em se afastar.
O nome dele me atinge como uma facada mal dada — dolorida e confusa. Ela percebe meu leve espanto e sorri, satisfeita, como se tivesse vencido algum tipo de jogo sujo. Tento recuperar o controle da expressão, me recomponho.
— Tenha um bom dia. — murmuro, me afastando.
Ela nem se dá o trabalho de responder. Apenas vira as costas e vai embora, como quem tem certeza de que deixou destruição suficiente.
Fecho a porta devagar, com a mente em frangalhos.
Ela só pode estar louca.
Me esforço para raciocinar. Quando foi mesmo que Joe chegou aqui? Vai fazer dois meses e dezoito dias. Segundo ele, passou um mês em casa tentando se reencontrar, até que os pais pediram que viesse cuidar dos avós.
Se ela está grávida de novo, deve estar com três… quatro meses no máximo. Mas… ela não tem nem sombra de barriga.
Droga, Joe… você é pai? É isso?
O que eu sei sobre ele, afinal? Sobre esse homem com quem converso todas as noites? Sobre esse alguém por quem comecei a me apaixonar?
Nada.
Absolutamente nada.
E aquele jeito de me olhar? Era só brincadeira?
Respirei fundo. Uma. Duas. Três vezes.
— Eu não preciso disso agora. — digo em voz baixa, quase como um pedido ao universo.
Deslizo até o chão, encostada na porta. E então, as lágrimas escorrem sem resistência. Choro, porque no fundo… eu já sabia.
Pessoas como eu não deviam se apaixonar. A depressão é como um lobo escondido na mata — sempre à espreita. Quando penso que fui mais forte, que escapei… ela me encontra. Sempre encontra.
Eu não nasci para ser amada. O mundo fez questão de me provar isso mais vezes do que eu gostaria de lembrar. E por isso… por isso eu não consigo confiar.
Porque nada, nada, parece ter vindo para ficar.
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