A Linha Tênue da Felicidade e o Eco do Passado
Dormi bem, apesar do turbilhão de descobertas sobre a vida da minha mãe, verdades que dançam fora do compasso que eu imaginava. Mesmo com a urgência de mergulhar no diário dela, a realidade me chamou: preciso trabalhar, verificar a galeria de artes e o restaurante. E o recanto do saber, minha mais nova aquisição – um cybercafé disfarçado de biblioteca juvenil, onde pais que matriculam os filhos nas oficinas de arte têm acesso gratuito a computadores e internet. Claro, há uma vitrine de guloseimas para adoçar o aprendizado. É um investimento em educação, mas com um olho na lucratividade. E, para ser sincera, é divertido! Talvez eu até mude meu escritório para lá; o restaurante é sério demais. Preciso de um lugar que inspire a criação e a alegria de trabalhar.
A cada novo empreendimento que planto e vejo florescer em benefício de todos, não apenas meu, sinto um peso se dissipar. Talvez seja porque, no fundo, carrego um leve fardo por usufruir de um dinheiro que meu pai me deixou. Eu não estava lá quando ele mais precisou, embora agora as lembranças do meu passado estejam desabrochando. Ainda assim, não consigo deixar de ter afeto por ele. Meu pai me criou, não com o amor e carinho idealizados, mas nunca foi cruel. Ele me tratou com bondade e respeito. E essa é a grande contradição com as memórias que me assombram. Mas há pessoas que são um tormento para outros e, ainda assim, amam seus filhos. Estou confusa, essa linha é tênue demais.
Douglas me contou que a herança quase triplicou; o valor inicial parecia ínfimo, mas logo o juiz liberou o triplo. Quando questionei meu advogado, ele simplesmente explicou que era um fundo de investimento do meu pai, antes inacessível. Estou cada vez mais ansiosa. Prometi a mim mesma que esperaria chegar em casa para mergulhar no diário da minha mãe, mas a espera é um tormento longo demais. Por isso, fui até o café e não resisti trouxe o diário. Resolvo as últimas pendências no computador, abro a bolsa e pego o diário. Sinto-me como se estivesse sendo vigiada, ou como se estivesse cometendo um erro, mas ignoro tudo e abro onde parei ontem à noite.
Diário de Claire
Setembro de 1996
Quem diria que há pessoas nascidas para amar, outras para serem amadas, e ainda outras que amam e são amadas, mas impedidas de estarem juntas. E eu estou aqui, com um bebê – meu bebê, para ser exata. Como é possível amar a criança que dorme ao meu lado e odiar o homem responsável por seu nascimento? Ele queria um filho e jurou nunca mais me tocar se eu o desse. Então, foi isso que fiz. Mas agora não quero que esta criança seja só dele, porque ela também é minha, e eu a amo como nunca imaginei. Apesar de tentar odiar essa pequena criatura, eu a amei desde que nasceu, há duas semanas.
Gideon me pediu para pedir o divórcio, mas se eu fizer isso, Harrison ficará com meu bebê. Ele disse que posso ir embora agora, mas não posso levar minha filha. Em um momento como este, o que escolher? O amor da sua vida, que pode até te fazer feliz, mas sem minha filha, sei que não serei completa? Ou escolher minha filha e ser feliz por tê-la ao meu lado, mas sem poder ficar com quem mais amo? Às vezes amaldiçoo o universo por ter trazido essa família Davison para cá. Eu era feliz. Agora não tenho família, nem nada além do bebê. Não posso ficar presa aqui, para sempre. Harrison me permite algumas liberdades, mas sou vigiada. Ele já me disse que cumpri meu papel, que posso desaparecer. Se ele me odeia tanto, por que quis se casar comigo? Havia tantas meninas apaixonadas por ele. Por que eu? Tenho esperanças de um dia sair daqui com minha filha e ser feliz, mas não sei se é sábio cultivar esperanças agora.
C&G
Por que meu pai se casaria com alguém que não amava? Não pode ser só isso. Deve haver uma explicação. Continuo lendo.
Diário de Claire
Janeiro de 1997
Estou doente, não sei se isso é uma doença em si, mas não aguento mais. Por mais que ame minha filha, fazer tudo sozinha e ainda ouvir que não faço nada o dia todo a não ser brincar com Lys, é demais para mim. Emagreci, e não sinto vontade alguma de comer. As poucas vezes em que me senti bem, foi conversando com Gideon pela grade do meu quarto. É exaustivo fingir que está tudo bem. Tentei fugir com minha filha, mas ele me encontrou e reduziu minhas saídas, minhas roupas, minha água e minha comida. Fiquei com tanta fome que agora meu corpo desistiu, e não sinto mais nada. A pouca comida que me trazia mal aplacava a fome. Não aguento mais… Não sou forte, nunca fui, e não quero ser.
C&G
Outubro de 1998
Ele me trata bem na frente dos outros, é bom com o bebê. O motivo de ele querer tanto um filho é que os pais dele não liberariam a fortuna sem um herdeiro. Ele perdeu o irmão em um acidente de carro, e o sobrevivente não era o predileto. Ele sempre foi visto como um fracasso, e casar comigo não melhorou muito sua imagem. A exigência dos pais era que queriam ser avós, já que a outra filha não é biológica e foi adotada. Ela não está no testamento, só a neta dos Davison — minha adorável Lys.
C&G
Maio de 2000
Harrison disse que me ama, e eu tive vontade de matá-lo. Como alguém que ama outra pessoa ameaça, bate e prende? Ele me mantém em um quarto com uma minúscula janela e grades. A porta de saída dá para o quarto dele; não posso sair sem que ele saiba. Como um ser humano pode dizer que ama alguém se o trata pior que um animal campestre? Pelo amor de Deus, eu o odeio tanto. Ele afugentou Gideon. Não o vejo há um tempo, não ouço falar sobre ele. Gideon simplesmente desapareceu e me deixou aqui. Meu coração está partido, mas tenho que ser forte por minha Lys.
Abril de 2002
Pedi o divórcio. Apesar de ele me tratar bem por causa da nossa filha, não aguento mais viver assim. Ele dormiu com a cidade inteira, e sinceramente não me importo. Mas quando pedi o divórcio, ele me bateu. Talvez eu tenha quebrado alguma coisa. Queria fugir, mas não consegui; ele é maior e mais forte. Ele chamou a víbora da irmã dele, que na verdade é meia-irmã. Ela me odeia com todas as forças, mas me ajuda porque sabe que podem ser presos se alguém me vê nesse estado. Queria ir para longe, quero ser amada de novo…
C&G
Setembro de 2004
Gideon voltou, mais forte, mais bonito e potencialmente poderoso. Ele me viu no supermercado, de calça jeans e suéter em pleno verão, e me arrastou para o carro. Me fez mostrar meus machucados e disse que daria um jeito nisso. Acho que estou tão carente que nessa loucura toda me senti amada e protegida. Eu o amo mais do que um dia amei, muito mais do que imaginei, e muito além do que eu deveria. Ele tocou meu rosto, sorriu e deu um beijo terno na minha testa. Ali havia promessas, e eu acreditei nelas…
C&G
Junho de 2005
Viver aqui está insuportável, mas não posso sair. Não envolvi a polícia nisto porque quero minha filha. Não posso ir a lugar nenhum sem ela. Harrison disse que eu não iria a lugar nenhum com ela e que, se eu saísse, não iria longe. Ele me ameaçou, mas dessa vez tenho Gideon do meu lado, e juntos somos mais fortes. Essa semana fomos a um piquenique: eu, Lys e Gideon…
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