A Luz do Dia Está Próximo

 

Sabe quando você carrega sacolas demais, por um caminho longo, e os dedos ardem, os ombros reclamam, e por um momento você pensa que não vai conseguir dar mais um passo? E então, alguém aparece e te ajuda — e o alívio é tão imediato, tão inesperado, que você sente que pode correr quilômetros só por ter deixado um peso para trás.

Foi assim que me senti depois de contar a Joe sobre meu tio. Eu o encontrei — ou ele me encontrou, não sei ao certo. Disse que não sabia para onde havíamos nos mudado. Estava em Oxford quando minha mãe se casou, e quando voltou, ela já havia desaparecido do mapa. Os pais dela, meus avós, nunca deram notícia. Ele só soube que ela tinha uma filha agora, comigo.

Disse que ficou confuso quando contei que descobri sobre ele por uma carta. Ele não lembrava de tê-la enviado. E eu, covarde, não consegui contar que mamãe tinha morrido.

Hoje é o dia do nosso encontro. Joe segura minha mão com força. Talvez ele perceba o quanto estou nervosa — ou talvez eu só esteja transbordando.

— Vai ficar tudo bem, Lys. Estou aqui. — Sua voz é firme, como uma âncora em mar revolto.

— Obrigada… eu só… — respiro fundo — só não sei o que vou encontrar.

— E tá tudo bem não saber. Mas seja o que for, você não vai passar por isso sozinha. Estou contigo. Sempre.

Assinto. É tudo que consigo fazer.

Quando o homem entra no saguão, eu sei. O cabelo grisalho, a postura ereta, o terno azul marinho impecável... Ele carrega o tipo de elegância que só o tempo e a dor sabem esculpir. Joe se levanta e vai ao seu encontro — parecem dois diplomatas se estudando, e por um segundo, me sinto fora de lugar.

Mas então ele me olha.

E não é julgamento. Não é pena. É reconhecimento. Talvez até alegria.

— Lily? — Ele pergunta, com a voz embargada. — Você… é idêntica à sua mãe. Posso… te abraçar?

Assinto, engolindo o nó na garganta.

O abraço é desajeitado, mas sincero. Um estranho me envolvendo com cuidado, como se eu fosse feita de lembrança e porcelana.

— É um prazer finalmente conhecê-lo, Ben. — Tento soar firme.

Ele me encara por um instante, atordoado. — Claire… onde está?

— Minha mãe… ela faleceu. — baixo o olhar. — Não consegui dizer isso por telefone.

Ben fica em silêncio. Um longo e respeitoso silêncio.

— Há quanto tempo?

— Treze anos. Não tenho muitas lembranças dela.

— Sinto tanto, minha querida… — Ele respira fundo. — E Harrison?

— Meu pai também faleceu. Menos de um ano atrás. Na verdade, eu só descobri sua existência dois dias atrás.

Ele abaixa a cabeça. — Passei tanto tempo procurando por sua mãe. Ela se casou com um homem que mal conhecia. Meus pais esconderam tudo de mim. Disseram que ela estava bem e que eu devia seguir com minha vida. Depois, nada. Quando você ligou… foi como se uma parte de mim que estava adormecida acordasse.

— E o cartão? Como foi parar comigo?

— Eu nunca mandei diretamente. Pedi que fosse entregue a ela… Achei que, se esperasse, um dia minha irmã me ligaria. Mas isso nunca aconteceu… até agora.

— Encontrei cartas entre as coisas dela. E um diário. Ela mencionava um homem chamado Gideon… Ela o amava. Quem era ele?

Ben hesita. — Era o filho de um dos gerentes da fazenda. Meus pais achavam indigno. Fizeram parecer que aceitavam, mas obrigaram Claire a se casar com outro. Eu não estava lá. Não soube de nada até ser tarde demais. Gideon se afastou. Construiu a própria vida. Hoje tem negócios em alimentos, frutos do mar… mas não mantenho mais contato.

Conversamos por horas. Sobre minha mãe. Sobre o passado. Sobre tudo que ficou suspenso no tempo. Ben quer vir me visitar no fim de semana. Não quer mais perder tempo. E eu… também não.

Não foi como imaginei. Não foi um reencontro cinematográfico. Mas foi real. E isso basta.


Agora, no sofá do apartamento de Joe, assistimos a um filme qualquer. Jimmy e Jane claramente se deram bem. Mas minha mente está em outro lugar.

Levanto devagar, olho para Joe e, antes que ele diga algo, ergo a mão. Preciso falar, pode ser que não seja o melhor momento e nem sei se tem momento certo, mas isso eu preciso contar e preciso falar disso agora ou não terei coragem o suficiente depois.

— Tem algo que você precisa saber. Talvez você ache que me conhece, mas… há coisas que ainda não te contei.

Ele faz que sim, silencioso. Me dá espaço.

— Antes de meu pai morrer… eu tentei tirar minha vida. — Digo de uma vez, sentindo o ar escapar dos pulmões. — Eu me sentia vazia. Sozinha. Fiz tratamento. Melhorei, achei que tinha superado. Mas nunca me senti filha de verdade. Meu pai… ele não era cruel, mas era ausente. Frio. Vivemos na mesma casa por treze anos e trocamos poucas palavras, eu era só uma criança quando perdi minha mãe e isso me deixou muito abalada, não lidei bem com isso... e essa pode ser a causa ou pode ser outra coisa, mas dentro de todo vazio que sentia, eu fiz isso não me orgulho.

Joe segura minha mão. Mas não me interrompe.

— Quando fui para um acampamento com colegas da faculdade, me ligaram dizendo que meu pai estava no hospital. Disseram que era parada cardíaca. Mentiram. Quando cheguei à cidade… ele já tinha partido. Me culpei e senti como se tivesse falhado como filha, não estava aqui para ele e com ele, quando saiu o resultado da autopsia soube que não somos diferentes, foi ai que pensei que não tinha mais solução, meu pai… ele se matou, Joe.

Não guardo o choro para depois e deixo sair, ainda me abala lembrar disso. As lágrimas vêm. Ele me puxa para perto, mas ainda assim, continuo.

— Eu não consegui entrar na casa. Fiquei observando de longe. E fugi. Não sabia pra onde. Só… fugi. Foi quando capotei o carro.

— E todo mundo achou que era outra tentativa… — ele completa, suave.

— Mas não era. Eu só estava… perdida.

— Você sobreviveu. Isso importa. E você procurou ajuda. Isso importa mais ainda.

— Quando você apareceu… eu estava me reconstruindo. Não sabia se conseguiria de novo. Mas você… me deu esperança. Você me fez querer saber de onde eu vim. Me deu força pra buscar respostas. E… Joe… tenho medo. Medo de repetir os erros dos meus pais. Medo de ser como eles, medo de não me recuperar e ser um peso para você, de não saber lidar com a vida e tentar de novo, não quero sua piedade.

Ele me abraça como se me colasse de volta.

— Você não vai. Eu não vou deixar. Você é forte, Lys. E corajosa. Você caiu, mas se levantou. Você não desistiu. Sabe o que é isso? Isso é amar a vida mesmo quando ela dói. E eu… amo você por isso. Amo você por inteiro, com tudo o que você é. Você é real. E é por isso que eu fico.

— Eu te amo. — sussurro.

— Mais do que batata frita? — ele sorri, e me aperta mais forte.

— Mil vezes mais.


Momentos são fatias do tempo que resistem à memória. Daqui a sete dias, minha pele pode já ter se renovado, mas o que senti aqui, nesse abraço, não vai se perder.

O cérebro pode até esquecer. Mas meu coração não.

E se for pra gravar um momento para sempre, que seja este: o momento em que deixei de carregar tanto peso sozinha.
E decidi — finalmente — viver.

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