A Linha Tênue da Felicidade: Desvendando o Passado
O diário escorregou da minha mão. Senti a cabeça girar, o estômago embrulhado, como se estivesse caindo num abismo. A névoa foi se dissipando, revelando um lugar lindo — o parque da minha infância. Eu corria, pequena, livre. Minha mãe sorria, mas havia algo em seu olhar, um quê de inquietação. Ao seu lado, um homem. Mas não era meu pai.
Esse homem a olhava com ternura. Era ele quem a abraçava. Ele quem brincava comigo, quem me fazia rir. Por que achei que fosse meu pai? Quem era aquele homem? E por que esse rosto, antes sem nome, agora me parecia tão familiar?
Alguém me chamava. A voz ecoava, e tudo se dissolveu. Despertei como quem sai debaixo d’água sem fôlego.
— Sra. Davison, está tudo bem?
— Hã… sim. Não comi direito. Deve ser isso.
— Quer algo? Podemos pegar um lanche.
— Não, obrigada. Só… preciso ir pra casa. — Peguei minhas coisas com mãos trêmulas. Jane me olhava desconfiada.
— Tem certeza? A senhora está pálida…
— Só preciso descansar. Obrigada. — Saí dali com o coração em alvoroço. Dirigi como se estivesse em transe, até parar em frente à minha casa. Olhei para a porta, mas não consegui entrar. Senti o peso de tudo que descobrira. Meus pais. Aquele homem. O diário. Eu precisava de ar.
Sem pensar, caminhei até a casa da Sra. Jones. E, para completar, começou a chover. A água fria na pele parecia combinar com a confusão que eu carregava por dentro. Estava prestes a virar as costas quando a porta se abriu.
Joe apareceu, surpreso.
— Lily? — Ele me puxou para dentro antes que eu pudesse dizer uma palavra.
Subiu as escadas rapidamente, me deixando ali, encharcada, tremendo. Eu devia ir embora. O que estava fazendo ali?
Quando dei um passo em direção à porta, ele voltou, segurando uma toalha enorme. Me enrolou nela e, sem dar chance de protesto, me ergueu no colo.
— Nem pense em sair assim. — Sua voz era firme, mas havia uma ternura que me quebrou por dentro.
Me levou até um quarto amplo, aconchegante, sem muito de si nas paredes. Me entregou roupas secas — largas, neutras, com o cheiro dele. Vesti-me lentamente, ainda confusa. Quando saí, ele estava sentado na cama.
— Está grande. — murmurei, mexendo na barra da camisa que quase virava um vestido.
— Está perfeita. — disse ele, e abriu os braços. Sem pensar, fui até ele. Precisava daquele calor, daquele abrigo.
Nos acomodamos na cama, costas na cabeceira, ele me envolvendo sem dizer nada. Foi o silêncio mais acolhedor da minha vida.
— Sabe… eu acho que a gente pode dar certo. — ele disse, com a voz baixa.
Virei o rosto devagar. — Você acha?
— Acho não. Eu quero. Só precisava que você baixasse a guarda e visse o quão inevitável isso é.
— Modesto. — sorri de canto.
— Realista. — ele rebateu com uma piscada.
Respirei fundo, os pensamentos ainda embaralhados.
— Você já… já se sentiu perdido? Tipo, sem saber quem você é ou de onde veio?
— Todo dia. — ele sorriu com melancolia. — Mas você me ajuda a lembrar.
— Como faz isso?
— Paro de lutar contra o passado. Aceito que tem coisas que não posso mudar. E outras… outras que só fazem sentido quando te tenho perto.
Engoli em seco.
— Eu… não sei se sou quem você pensa que eu sou. E se eu estragar tudo?
— E se você for ainda melhor do que imagino? — Ele apertou minha mão. — A gente não precisa ter todas as respostas, Lily. Só precisamos querer descobrir juntos.
Meus olhos se encheram.
— Tenho medo de não saber amar.
— Eu também. Mas se você tentar, eu tento com você. Medo a gente enfrenta de mãos dadas.
— E se não der certo?
— A gente se reergue. Como amigos. Como parceiros. Como for preciso. O importante é não desistir antes de tentar.
Fechei os olhos por um momento.
— Eu quero. Mas vou precisar de ajuda.
— Você tem. — ele sussurrou.
Um toque suave na porta interrompeu o momento. A Sra. Jones entrou devagar, sorrindo com a mesma serenidade de sempre.
— Ah, então é você, Lily! Quase achei que fosse um rapaz. — riu. — Vai ficar para o jantar?
— Eu… talvez. Obrigada.
— Joe, querido, desçam quando quiserem. — Ela nos lançou um olhar doce antes de sair.
— Ela é sempre assim? — perguntei.
— Sempre. Mas com você foi especial. — Ele se inclinou e tocou meu rosto. — Vamos?
— Vamos.
Descemos de mãos dadas. A casa tinha cheiro de comida boa e lembranças doces. Vovô Jones abriu os braços ao me ver.
— Lily, minha menina! Que alegria!
— Eu que fico feliz, vovô.
— Você sabe que sempre terá lugar aqui, não sabe?
Assenti, com o coração apertado e cheio ao mesmo tempo.
— O tempo é um tirano, mas o amor… — ele disse, olhando a esposa com ternura. — O amor é paciência, é escolha. Ele precisa ser regado todo dia, como uma plantinha. E quando floresce… ah, é a coisa mais bonita do mundo.
— Vamos jantar antes que ele vire um poeta — disse a Sra. Jones, divertida.
— Pode rir, minha flor, mas você é minha melhor obra.
Todos rimos. E naquele instante, entre o calor do lar, o cheiro da comida e os olhares cúmplices, eu soube: talvez tudo realmente pudesse dar certo.
— Que bom que vocês se entenderam. — Ada me abraça com um carinho que aquece por dentro. — Fico feliz por vocês.
Talvez, só talvez... eu consiga fazer parte de uma família. Sei que ainda é cedo para pensar nisso, mas há uma sensação doce e inédita crescendo em mim. O amor, descobri, nasce nos gestos pequenos. Ele não precisa de garantias nem de promessas: só da vontade de ficar. E eu quero ficar. Quero tentar amar esse jovem que, ora se esconde em silêncios densos, ora me desarma com palavras inesperadas. Quero entender cada camada sua. E mais que isso, quero que funcione.
Ficamos conversando com os avós de Joe por mais um tempo. Eu não queria ir embora. Permanecer ali, ao lado dele, me afastava do peso do diário — do passado que insiste em me puxar para trás. Mas sei que não posso evitar para sempre. E ao sair, compreendo que talvez precise mesmo me abrir mais, conhecer as pessoas de verdade, sem me esconder nas dores antigas. Não será fácil... mas é um começo. A única certeza que tenho agora é essa: preciso tentar.
Mais tarde, já em casa, senti um aperto no peito. Havia perguntas demais me rodeando, e eu precisava de pelo menos uma resposta antes de conseguir dormir. Liguei para Douglas e pedi o exame de DNA que a Martha havia me solicitado tempos atrás. Ele não hesitou em enviar, embora sua voz carregasse alguma relutância. Não perguntou mais do que o necessário. O resultado era claro: sou, de fato, filha de Harrison Davidson.
Mas isso não fazia sentido.
A figura que mora em minhas memórias — aquela que me embalava com os olhos cor de mel e o sorriso de quem enfrenta a vida com as mãos calejadas — não se parece em nada com ele. Eu acreditava que aquele homem fosse Gideon. Então, por que as lembranças me contam outra história?
Sigo para o antigo quarto do meu pai e examino tudo com atenção. Nenhuma porta aparente, nenhum vestígio do cômodo escondido descrito no diário. Reviro o guarda-roupa, removo cada peça, toco as paredes em busca de algo. Um som oco. Uma alavanca.
Meu coração dispara. Parte de mim quer acreditar que foi tudo um devaneio, que o diário não passou de uma fantasia. Mas a alavanca está lá. Empurro. Nada. Forço mais. Ainda não. Olho ao redor e vejo um candelabro — quem usa isso hoje em dia? Vai servir. Dou uma pancada, depois outra. Nada. Frustrada, puxo meu moletom que havia prendido na alavanca. E então, como se o destino aguardasse apenas esse gesto impensado, a porta se abre.
Fico paralisada. O quarto está lá, como descrito: pequeno, com uma cama singela, uma cômoda e uma janela com grades, por onde entra apenas o fio prateado da lua. Tudo arrumado com zelo. Há livros empilhados, uma fotografia minha, e outra — dela. Ela e um rapaz de olhos castanhos cor de mel. Eles estão próximos, ele a envolve com ternura, ela sorri para ele, não para a câmera. Há uma suavidade em seus rostos, uma alegria serena que nenhuma outra foto capturou.
Ela tinha os cabelos parecidos com os meus — um pouco mais escuros — e olhos verdes, intensos como esmeraldas. Em outras imagens, está loira. Talvez tenha pintado. Aqui, parece verdadeiramente feliz.
Sento-me na cama, atônita. Sei tão pouco sobre mim. Menos ainda sobre quem foram meus pais — ou quem pensava que fossem. Meu passado é um quebra-cabeça de peças embaralhadas. Abro uma caixa de madeira, entalhada com desenhos delicados. Dentro, mais fotos. Todas com as iniciais “C & G”. Cartas também. Levo tudo comigo para meu quarto. Preciso entender.
Passei a noite em claro.
Descobri que Gideon trabalhava para a família da minha mãe. Uma carta de Ben, irmão dela, mostrava a surpresa e o descontentamento com o casamento repentino com alguém que ele não conhecia. Uma mulher chamada Beatriz suplicava por respostas. Outras cartas seguiam o mesmo tom: preocupação, ausência de notícias, saudade. Parecia que ela simplesmente desaparecera. E nas cartas de meu avô — que descobri ser o pai dela — havia arrependimento. Ele pedia perdão por algo que fizera, mas ela nunca respondeu. Dizia ser sua última tentativa. E depois... o silêncio.
As cartas de Gideon me tocaram profundamente. Em cada linha, havia emoção. Algumas estavam borradas por lágrimas, outras manchadas de tinta desbotada. Ele ainda a amava. Quem teria sido capaz de separá-los? Seria só o dinheiro? A condição social?
Identifiquei-me com meu tio Ben. Senti que precisava encontrá-lo. Precisava saber mais. Vasculhei novamente o quartinho. E lá estava: Claire O'Donnell. Esse era o nome de solteira da minha mãe. Sua antiga carteira de motorista ainda tinha o nome estampado.
Voltei ao quarto com uma carta nas mãos e uma foto. Atrás, um número de telefone. Quis ligar. Mas quem atende ligações de desconhecidos no meio da noite?
A verdade é que preciso descansar. Mas, mais do que isso, preciso descobrir quem sou — e por que parece que ninguém nunca quis me contar.
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