Joe - Resolvendo o passado

 Joe apertou o volante com força, os dedos tensos como se quisessem impedir o mundo de continuar girando. Já se passaram três meses desde a última vez que vi Lilly, e ainda assim, é como se ela estivesse comigo em cada quilômetro percorrido. Me pergunto o que ela deve estar pensando agora — se ainda pensa em mim. Mas, honestamente? As coisas do meu lado não ficaram nem um pouco fáceis. Estou esgotado.

O hospital começa a surgir no horizonte como um santuário e uma sentença. Dezesseis horas dirigindo sem parar. O corpo pede descanso, mas a alma sabe que não há tempo para isso. Não posso mais viver essa farsa. Não posso me casar com alguém que não amo.

Um dia, talvez, eu tenha amado Alli. Mas o coração dela... sempre esteve em outro lugar. E o meu também. Tudo desandou no momento em que percebi que estava apaixonado pela noiva do meu melhor amigo. Me odiei por isso. Então fugi. O Exército foi meu refúgio — ou minha fuga. Até que Andrew, meu melhor amigo, se alistou também. E quase morreu por minha causa.

Para o mundo, Andrew está morto. Para mim, ele é a sombra de uma dívida que nunca vou conseguir pagar. Deixou para trás uma noiva e uma família disfuncional que agora tenta controlar até o destino do filho que ela carrega. Prometi cuidar de Alli. E para protegê-la, aceitei o absurdo: um casamento arranjado, uma vida sem amor.

Mas então... conheci Lilly.

E tudo mudou.

Ela surgiu como uma brisa silenciosa num telhado qualquer, e ali fiquei — preso. A garota que lia o mundo com os olhos e se escondia das próprias dores. Me apaixonei sem querer, sem poder, sem permissão. Fiquei confuso, dividido entre promessas feitas e sentimentos que nunca planejei ter.

Dois dias antes de deixá-la, descobri que Andrew estava vivo. E tudo virou do avesso.

Desde então, fiz de tudo para encontrá-lo, para reparar o erro, para devolver a vida que achavam perdida. Quando disseram que o corpo dele nunca foi encontrado, procurei. Deus, como procurei. Mas havia limites — e soldados demais dependendo de mim. Fomos obrigados a partir. E isso me destruiu.

Hoje, estou aqui. O hospital parece um hotel de luxo, silencioso demais, bonito demais para as histórias quebradas que abriga. Beleza não é garantia de bondade — às vezes, só disfarça a dor. As portas de vidro se abrem com um sussurro metálico. Entro.

Na recepção, uma jovem de sorriso ensaiado me recebe.

— Bom dia, senhor. Em que posso ajudá-lo?

— Vim ver Andrew Cesare.

Ela consulta algo rapidamente.

— Ele está finalizando a avaliação médica antes da alta. Pode aguardar na sala de espera.

— Obrigado.

— Sinta-se à vontade.

Difícil. Há muito tempo não me sinto à vontade em lugar nenhum.

Observo o lugar ao meu redor, e esse instante de espera me concede o tempo que eu precisava para pensar — e temer. Como vou explicar ao meu melhor amigo que quase me casei com a mulher que ele ama? Que mesmo sem querer, aceitei ocupar um espaço que nunca foi meu? No lugar dele, eu me sentiria traído. E, sendo sincero, ele teria toda a razão.

A última vez que estive aqui, a médica comparou Andrew a um Vingador — o Homem de Platina, talvez. Disseram que era quase um milagre ele estar vivo. Seu corpo, reconstruído. A coluna danificada, o peso do mundo agora limitado a 10kg — nada que ele possa carregar sem se partir. Nem a própria esposa nos braços.

E, mesmo assim, o que me consola — ou talvez me destrua de vez — é saber que ele sobreviveu pelo amor que sente. O amor que nunca traiu.

— Joe… cara, você não sabe o que é sofrer até precisar lutar pra continuar sendo chamado de homem — Andrew surge na cadeira de rodas, empurrado por uma enfermeira. Seu sorriso cansado me atinge como um soco no estômago. A culpa amarga me atravessa: aquele lugar, aquela dor, deveriam ser meus.

Fico em silêncio, tentando manter o controle, mas ele percebe.

— Você está horrível. O que aconteceu? Parece que não dorme há meses. Nem no Iraque te vi assim, tão… acabado.

Sorrio, sem coragem de dizer a verdade. Ele quer ir embora. Voltar para casa. Ver a mulher que ama. Segura o que restou da sua vida como quem segura o último fio de esperança.

— É um menino… tem um ano e seis meses — murmuro, quase como desculpa.

— Está brincando… Allison deve estar orgulhosa do nosso garoto. Como ela está?

— Que tal ver com seus próprios olhos? — empurro a cadeira, tentando não tremer. Peguei sua mochila e seguimos até o carro.

— O que você disse a ela… quando não voltei?

— O que combinamos. Se um de nós não voltasse, o outro cuidaria da família.

— Joe… foi difícil ficar aqui esse tempo todo. Hoje faz quase um ano que estou nesse hospital. Cirurgias, dores, reabilitação. Aquela missão me partiu. E ainda assim, só consigo pensar se perdi tudo o que importava.

— Quando você foi dado como morto, ainda fiquei por lá mais seis meses. Mandamos buscas… mas nada. Quando voltei, descobri que você e Allison tinham um filho. E os pais dela… Deus, Andrew, eles ameaçaram dar o bebê para adoção. Disseram que não aceitariam uma filha desonrada e um neto bastardo.

— Você não deixou isso acontecer…

— Não podia. Então… eu me ofereci para casar com ela. Pra protegê-la.

Ele ri. Mas é um riso amargo, quase de escárnio.

— Você fez o quê? Que fácil pra você, não é? Como se nunca tivesse imaginado isso. Não esperou nem meu caixão esfriar, Joe.

— Me diz o que você teria feito, então. Me dá uma solução melhor!

— Você podia tirá-la de lá sem precisar casar! Aí eu volto e encontro minha noiva quase casada com meu melhor amigo?

— Não nos casamos. Ainda não. E não era um casamento de verdade, Andrew. Era fachada. Ela estaria livre depois… livre pra se casar com quem quisesse. Eu jamais a tocaria. Dei minha palavra.

— Isso é tão típico de você… honrado demais. Mas ainda assim, Joe… ela era minha noiva.

Andrew vira o rosto para a janela. Silêncio. A estrada passa devagar, tão devagar quanto a dor que carrego no peito. Paramos num hotel de beira de estrada.

— Você sabe que posso muito bem seguir direto…

— Não é bom pra sua coluna ficar tanto tempo sentado. E eu… preciso descansar.

Sem resposta. Apenas silêncio.

Entro no meu quarto e encosto a porta. Sabia que não seria fácil… só não imaginei que ele fosse tão duro. Mas se é isso que preciso enfrentar para encontrar o que realmente importa, então que seja.

Deitado na cama, tudo que consigo pensar é em Lilly.

Aquela noite… ela dormia e parecia triste, mas ainda assim era a coisa mais linda que já vi. O cabelo escorrendo pelo rosto, os lábios entreabertos, a palma da mão estendida sobre o cobertor. E eu, ali, sem poder tocá-la. Vê-la tão perto e não tê-la foi o choque de realidade que eu precisava.

Quero abrir os olhos e vê-la sorrindo. Quero ser o motivo desse sorriso. Quero sentir o pulsar da sua pele sob a minha, ouvir seu coração bater de verdade. Pode ser ambicioso demais… mas é atrás disso que estou. Atrás de uma vida. E nessa vida, quero Lilly em cada segundo dela.

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