Joe - Mundo Paralelo

 Digamos que... Allyson não digeriu bem a notícia da volta de Andrew. E, sinceramente, eu também não soube manejar a situação. Guardei o que deveria ter sido dito. Depois, um silêncio se instalou — calmo por fora, mas ardendo por dentro.

Os pais dela, no entanto, foram diretos. Fizeram ameaças — daquelas que não se proferem em voz alta, mas que se cravam na alma. Disseram que não queriam um inválido como genro, que fariam de tudo para arrancar o pequeno Anthony e entregá-lo ao sistema. Gente amarga, uma maldade impensável contra uma criança inocente.

Jimmy e eu… bem, achamos nosso equilíbrio. Sei que é tarde para consertar todas as falhas, mas eu tentei. E por mais que ainda carregue cicatrizes, é por ele que estou aqui, em meu antigo quarto, me preparando para a festa de Andrew — que, felizmente, já começa a andar.

Quanto a mim… eu só queria voltar inteiro. Ou quase.

Só mais um dia. Um último brinde, uma última conversa, e então volto para ela. Para a mulher que, sem saber, me manteve vivo. Contei sobre ela a Andrew. Ele riu, disse que eu era tolo por ainda estar aqui, quando já devia estar ao lado dela.

Desço as escadas. O salão está lotado. Minha mãe, como sempre, não cumpriu o combinado. A festa era "íntima", mas para ela, a cidade inteira se encaixa. Meu pai está com os amigos, ainda com aquele ar de comandante e piadista. Anos se passaram desde o exército, mas ele ainda tem a postura de quem sobreviveu e voltou mais forte. Nem todos têm essa sorte.

— Boa noite a todos. Pai… parabéns pelos 38 anos de casamento. — O abraço é sincero. Senti falta dele, dos conselhos que antes ignorei. Agora, sei que o tempo não espera.

— Sinceramente? Achei que não viria. Nunca foi fã de festas. Mas estou orgulhoso do homem que se tornou. Ah, e seus avós estão aqui. E magoados.

— O que fiz agora? — pergunto, já sabendo a resposta.

— Telefone, celular, internet? Custava ter ligado?

— Me desculpa, pai. Não pensei direito.

— Não é a mim que deve desculpas. Eles estão por aí. Vá. E antes que eu me esqueça: Grayson e Cora também vieram.

— O quê? O que esses dois fazem aqui?

— Apareceram de surpresa. Estão com Andrew e Alli. Uma reunião particular, digamos…

Mais uma vez o passado me chama. Mas hoje não. Hoje eu só quero respirar. Entro na sala de música, vejo todos conversando. Me retiro em silêncio. Não por egoísmo. Mas porque cada um tem seus fantasmas. E eu já tenho os meus.

Meus avós estão em um canto, rindo. O casamento deles é uma lição de tempo e afeto. Abraço os dois com força.

— Joe, querido… você sumiu por cinco meses. Disso que viajaria por dias… ligamos para seus pais, preocupados. Onde estava?

— Desculpa, vovó. As coisas ficaram confusas. Esqueci de avisar.

— Nós te amamos. Por isso nos preocupamos. — Meu avô diz, com rara suavidade.

— E eu… — Minha mãe surge atrás de mim, o coque elegante, o olhar firme — …vou morrer de desgosto com os filhos que tenho.

— Oi, mãe… me desculpa. Acho que te magoei muito esses dias.

— Já dei minha bronca. Agora, vá se divertir. Nós te amamos, filho. E ainda tenho dezenas de convidados.

— E depois diz que era para os íntimos…

— Eu ouvi isso! — Ela sorri e se afasta.

Olho ao redor. A casa parece maior. Nunca a vi tão cheia. Meus pais celebram tudo ao mesmo tempo. Quando voltei do Iraque, fiquei aqui por um mês, mas estava quebrado demais para notar festas. Hoje é diferente. Há algo novo pulsando.

Observo meus pais. Eles se amam. De um jeito imperfeito, mas real. Minha mãe, escritora sensível. Meu pai, ex-militar, só demonstrava afeto ao falar de tanques. E ainda assim… eles funcionam. São o improvável que deu certo.

— Sabe que pode ter isso também, né? Uma família. Alguém pra amar. Mas você gosta de complicar… — Meu avô surge, a mão em meu ombro. — Um telefonema não faria mal.

— Até você, vovô?

— Até eu. — Ele ri e se afasta, erguendo o copo.

Não vi meu irmão. E preciso falar com ele. Tenho dívidas emocionais. Éramos muito próximos, mas algo se partiu. Ele ficou mais reservado, tímido. A gagueira não ajudou. E eu… eu era popular e idiota. Não estendi a mão, e hoje sinto o peso da culpa.

Agora ele está do outro lado do salão, conversando. Ele me nota e vem.

— Olha só, quanto tempo… Achei que tinha sido raptado — ele diz, com um sorriso que mistura ironia e mágoa.

— Pra ser sincero, estou aqui há uma semana. Você que anda sumido.

— É, moro no meu apartamento. Estive ocupado. Mas é bom ver você, Joe.

— Queria ter vindo pra sua colação… não deu, mas disseram que foi incrível.

— Foi, sim… você sempre foi minha inspiração. Mas o homem que você se tornou… esse eu não quero ser.

Sinto o golpe seco. Ele não é cruel, só… verdadeiro.

— Você se afastou de todos. E presumiu que eu não queria você por perto. Mas a verdade é que você nunca tentou. E eu só... esperei.

Ele balança o gelo no copo. O tilintar é leve, mas dentro de mim é uma martelada. Fiz besteira, eu sei. Estraguei algo bonito.

— Aproveita a festa, Joe. Aqui não é hora nem lugar pra isso — ele sorri de lado, uma expressão que esconde dor. Ele cresceu. Virou um homem capaz, firme, mas ainda carrega cicatrizes. E eu as ajudei a criar.

Não sei como reparar isso. Ele se afasta. Resta-me observar — como quem olha o Everest de baixo, sabendo que cavou a própria base.

Recomeçar a vida exige encarar os destroços. E os meus me assombram. Mas para construir um futuro com quem amo, preciso resolver isso. Limpar minha casa por dentro. Só assim ela poderá morar nela comigo, sem medo.

Saio do salão. Detesto festas. Preciso de silêncio. De clareza. Vou até a biblioteca. Sempre gostei dali — passava horas vendo minha mãe escrever, sonhar, viver através das palavras.

— Joe, querido — minha mãe me intercepta —, pode me fazer um favor? A moça com seus avós está na biblioteca. Não estava bem… pode fazer companhia a ela?

— Desde quando eu sou boa companhia?

— Não seja grosseiro. Ela está lendo, descansando. Talvez precise de paz. Vá.

— Tudo bem. Mas da próxima manda o Jimmy.

Ela ri e me manda um beijo. A biblioteca está tranquila. A lua reflete no lago, iluminando o espaço. É como entrar num tempo suspenso.

Observo tudo antes de notar que não estou sozinho. No canto esquerdo, vejo os pés de alguém — sandálias simples, vestido escorrendo pela poltrona. Ela está ali, imóvel.

Volto minha atenção à paisagem. Se quisesse conversar, teria dito algo. Me perco num pensamento: imagino trazer Lilly aqui. Ver seu sorriso diante dos lírios. O nome dela é uma flor. Ela também é — delicada, forte, viva. Meus pensamentos são dela. Meus planos são com ela.

— Você está suspirando alto demais, parece até um menino apaixonado — diz uma voz feminina, anasalada, levemente rouca. Deve estar resfriada. Não gosto da provocação, mas não tenho energia para retrucar.

— Perdão pela intromissão nos seus pensamentos, cara senhorita. Com licença.

Começo a sair.

— Ei... me desculpe. Não estou no meu melhor estado de espírito. Só vim porque os pais do Sr. John — ela sorri — os dois, pai e filho, me pediram para acompanhar seus avós. Sou a motorista designada da noite.

— Meus avós são assim mesmo… acostume-se. Posso acender a luz?

— Não! Quer dizer… estou com dor de cabeça. A luz pioraria.

— Tudo bem. — Me sento, respeitando seu espaço.

— Você é um Jones? Ótimo. Pode me explicar essa obsessão com nomes que começam com “J”? John, Jim, Joe… até onde vai isso?

— Começou com meu bisavô, Jared. Ele tinha essa ideia de criar uma linhagem inteira de “Jotas”. Meio bizarro, mas divertido. Três gerações de homens únicos.

— E você? Vai continuar a tradição?

— Nunca pensei nisso.

— Quantos filhos planeja ter?

— Dois, talvez. Jack e Julian. Sei lá.

— E sua esposa vai aceitar?

— Ela é incrível. Jamais imporia isso. Mas... acho que ela riria. Lilly tem esse jeito — gentil, firme, e com opinião própria.

— Você parece apaixonado.

— Eu sou. Ela bagunçou minha cabeça. Penso nela o tempo todo. Tomo decisões imaginando um futuro com ela. Mas me afastei. Precisava pôr ordem na vida antes de tê-la de volta.

— Então você deixou a mulher que ama… sem nenhuma explicação?

— Não exatamente.

— Joe… às vezes só explicar já basta. Não precisa prometer o mundo, só falar. Isso evita metade das dores.

— Com todo respeito, você nem quer conversar. Está aqui escondida.

— Primeiro: não estou escondida. Segundo: vou deixar você sozinho pra pensar nas bobagens que fala sobre mulheres. Por via das dúvidas, conversar ainda é a melhor saída.

Ela se levanta, atravessa a sala e sai, batendo a porta. Fico ali, sozinho. E puto comigo mesmo. Porque, droga, ela está certa. E a verdade pode ser mais dolorosa que a guerra.


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